domingo, 6 de abril de 2008

O doce vermelho das beterrabas.














"O doce vermelho das beterrabas."
João Batista Ferreira

Meus dentes estão vermelhos das beterrabas que acabei de comer. Gosto de comê-las todas as manhãs, na hora do café.
- Nosso vizinho vai soltar mais um balão negro - meu irmão vem avisar, correndo.
Todas as manhãs, acontece assim: meu irmão fica observando o vizinho e avisa quando ele solta seus balões. Algumas pessoas estranham, meu irmão adora.
Minha irmã está na mesa, comigo. Perdeu o sono. Contou carneirinhos a noite toda.
- Carneirinhos? - pergunto, desinteressado.
- É. Contei quase trinta mil.
- E adormeceu?
- Não. Amanheceu - ela tenta sorrir. O olhar escuro de quem ficou muito tempo acordada.
- Eram todos tão brancos - diz, acompanhando uma formiga perdida na toalha da mesa.
Mastigo outra beterraba. Mais doce do que a anterior.
Meu irmão grita da janela.
Nosso pai geme no seu quarto. Ficou assim desde que foi assaltado na rua. Encostaram uma faca no pescoço dele. Não sai da cama faz três dias. Descobriu que pode morrer, imagino. Sempre acompanhou com interesse a morte de familiares e conhecidos. Ou então é a saudade de nossa mãe que bateu de novo.
Nossa mãe morou nesta casa. Ela foi embora há quatro anos. Um dia ficou muito nervosa e arrancou os cabelos. Não gritou, como disseram os vizinhos maldosos. Apenas arrancou alguns cabelos, que ficaram espalhados pela sala.
Lembro de ouvi-la repetir diante do espelho, quase todos os dias:
- Preciso dar um jeito no meu cabelo. Um dia desses, ainda dou um jeito no meu cabelo.
Sempre dizia isso.
A tristeza de ficar sem nossa mãe foi grande. Eu não entendia porque não ela quis que a gente fosse com ela. Foi pior do que se tivesse morrido.
Meu irmão grita mais alto da janela.
Minha irmã corta no meio a formiga perdida na toalha. Agora são dois pedaços, perdidos na toalha. Ela ri das metades tentando se reencontrar.
- A faca está sem fio - reclama - É de tanto cortar beterrabas – e retoma uma de nossas discussões desanimadas.
- São todas cozidas e macias - respondo, mostrando uma parte de meus dentes, cobertos de vermelho. É assim que costumo mostrar meu desagrado.
Ela muda de assunto.
- Alguém precisa tirar a poeira dos olhos abertos de nosso pai.
Finjo que não é comigo.
Meu irmão faz silêncio, agora. O balão negro subiu, com certeza.
Meu irmão descobriu a alegria dos balões. É outra pessoa de uns tempos para cá. Fico feliz por ele.
No banheiro, quando meu cabelo, lembro de nossa mãe. Talvez um dia também mexa no meu cabelo. Mas ainda não chegou a hora. Plantei muitas beterrabas em nosso quintal. A colheita será grande. Melhor do que no ano passado.
Eu cuido da casa, de meu pai – esquecido no quarto - de minha irmã, que nos maltrata. Cuido de tudo.
Quando todos dormem, às vezes parece que escuto as beterrabas crescendo no escuro. Nestas horas, penso mais do que nunca em nossa mãe, na alegria de meu irmão e em deixar a casa.
A cada noite que passa, sinto que está mais perto o dia em que vou pegar nossas coisas, um pouco do que resta do dinheiro da casa, acordar meu irmão e lhe contar aquela história, tantas vezes repetida - da viagem para um lugar cheio de balões.
Sei que ele vai estar com sono. Mas sei que vai segurar minha mão e me acompanhar. Vou mostrar o bilhete encima da mesa, escrito para nossa irmã: agora é sua vez de tomar conta do nosso pai e da casa. Não se preocupe, a gente vai se cuidar e mandar notícias. Gostamos de você, apesar de tudo.
Sinto que este dia está cada vez mais perto. Talvez hoje.



JOÃO BATISTA FERREIRA é gaúcho de Porto Alegre. Psicólogo, contista. Participou de antologias e oficinas de contos coordenadas por Charles Kiefer e Caio Fernando Abreu (antologia Paulistanos Desvairados, inédita). Mestrando em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de Brasília. Vive em Brasília.

3 comentários:

  1. Oi João!
    O seu conto é mesmo muito bonito! Espero colocar outros aqui.
    Abraço!

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  2. Oi Tan, agradeço sua gentileza.
    Descobri que meu livro foi digitalizado. Está em:
    http://www.esnips.com/web/Rev-Nacionais-JoaoBatistaFerreira
    Caso você goste de algum conto, fique à vontade para publicar no seu blog.
    abraço, joão
    ferreira.jb@gmail.com

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  3. Bacana!
    Estou indo agora olhar!
    Abraço João!

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